Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar.
Paulinho da viola.
Vinda não se sabe de onde, a mulher chegou à minúscula cidadezinha e se instalou no extremo leste do povoado às margens do córrego que um dia tinha sido um enorme ribeirão, mas agora não era mais que um filetinho d’água abrindo caminho no meio do capinzal.
Era uma mulher alta e esguia cuja forte presença punha medo nas gentes. Os cabelos negros, a pele dourada, o rosto anguloso, os reluzentes olhos castanhos amendoados compunham uma imagem cujo fascínio se traduzia em medo.
No dia seguinte à sua chegada, o córrego cresceu e transbordou, voltando a ser um enorme ribeirão, que alargou suas margens e inundou a várzea inteira, fazendo emergir por toda planície uma exótica flora e fauna.
No verde do capinzal, pássaros, jabutis e felinos, há muito tidos como extintos, ressurgiram em todo seu colorido e exuberância. Sempre-vivas, violetas e azaléas esvoaçavam ao vento.
E tudo isso sem que caísse um mísero pingo d’água durante toda a noite e a manhã inteira. O céu permaneceu calmo, límpido e claro durante todo o dia, continuando assim por toda aquela semana e dias seguintes.
Por conta desse estranho fenômeno, toda gente muito se assustou e passou a chamar a intrusa do córrego de a feiticeira. Seus embruxos enfeitiçavam o ar exalando maus presságios.
Tanta beleza só podia ter parte com o cão. Não bastasse a imponente figura, ela ainda mexia com os elementos. Terra, fogo, água e ar pareciam dobrar-se às suas vontades.
Era isso, ou todos estavam ficando loucos, quando viram, num inesperado piscar de olhos, o tamanho das hortaliças dobrar. Aquilo só podia ser o sintoma de alguma doença ruim.
E o que dizer da suavidade do vento, inesperadamente manso e refrescante. Naquelas lonjuras de lugar nenhum, a terra sempre fora seca e esturricada, carente de qualquer cobertura ou vegetação. E agora, vinha toda aquela verdura dar aos campos gramados e pastagens.
Em tudo o sorriso da bruxa punha outra alegria.
Enfeitiçados, os homens trabalhavam para além da conta sem procurar os porquês de toda aquela euforia. O ânimo das gentes ganhava outros rumos e poucos sabiam o que fazer com toda aquela euforia.
Os velhos festejavam a longevidade e prolongavam a existência para além de qualquer prazo ou validade. Num súbito improviso, a vida agora era uma dádiva e não havia porque se desfazer da existência.
Conscientes de seus dotes e atributos as mulheres reivindicavam direitos e sonhavam com inesperadas e insuspeitas igualdades. Tanto ativismo e militância só podia ser obra da bruxa.
Com todo aquele cheiro de fumaça, lenha alguma iria negar seu fogo.
Crianças e adolescentes cresciam e multiplicavam seus porquês, motivos e razões. A gurizada se revirava num enorme ponto de interrogação.
Repentinamente progressiva e próspera, a cidade passou a questionar as razões de tantos e inesperados sucessos. De verdade mesmo, ninguém sabia o que fazer com toda aquela insurreição.
Aquilo estava começando a ficar com cara de subversão.
E se de repente o povo inventasse uma revolução. Quem iria controlar o furor da rebelião?
O prefeito, o delegado e o vigário começaram, então, a maquinar uma vingança azeitando as engrenagens do cérebro para dar à coisa-ruim as três cabeças do guardião do inferno.
Era preciso pôr um fim a toda aquela danação. Ao diabo a parte do cão. Mandaram, então, chamar a bruxa para que ninguém ouvisse mais a melodia de seus encantos – a sedução de seus perfumes, incensos e humores.
Os feromônios da feiticeira impregnavam o vento e o ar. A harmonia só voltaria a reinar naquelas paragens se dessem um fim àquele êxtase.
Santa Cruz do Ribeirão precisava voltar a ser o que sempre fora – bastião da moral e dos bons costumes. Um lugar de conduta limpa e de harmonia.
A bruxa veio imersa em um vistoso vestido branco todo esvoaçante, um reles colar de contas em volta do pescoço, uma guirlanda de flores do campo em volta dos cabelos e nenhum outro adereço além de um suave perfume alfazema que envolveu todo recinto, dando ao ar um inesperado frescor de novidade.
Tudo pensado na medida exata para disparar o gatilho da bisbilhotice, do mexerico e falatório. Viram a feiticeira entrar ali na chefatura de polícia?
Veio toda inteira pronta para o fascínio e a sedução. Aquilo também já era uma imensa perversão, onde já se viu tamanha perdição?
O evento provocou um enorme burburinho, pondo toda cidade num enorme alvoroço. Mesmo sem que ninguém soubesse o que se conversou ali na salinha onde se aglomeraram o prefeito, o delegado e o vigário – completamente inquisidores em volta da feiticeira, seus encantos e mandigas.
O interrogatório durou toda manhã e a tarde inteira, varando a noite e a madrugada, pondo muita caraminhola e invencionice na imaginação das gentes.
Da conferência, regada a muitos comes e bebes, o pouco que se sabe é que a bruxa foi trancafiada no xadrez. Numa cela arquitetada para conter o poder de seus feitiços.
Era preciso pôr um fim aos seus abusos e desmandos.
Onde já se viu admitir que não tinha nada a ver com o acontecido, que tudo se dava por obra e graça de algum fenômeno climático ainda não esclarecido?
Aí estava a prova de que boas intenções a sujeita não tinha.
Sua cabeça era uma usina de maus agouros prontos para encher toda a cidade, vizinhança e arredores, com os ares de sua desgraça. Aquilo era uma víbora, uma megera. Jararaca em pele de lagarta.
Que tirassem a esperança do banho-maria, daquele casulo não sairia borboleta.
Por conta dessa única e inegável verdade, não demorava e o oco de sua cela cobriria de vazios os fios de suas esperanças, minando sua fé e confiança.
Lentamente, ela perderia o vigor de sua força e exuberância.
Mesmo sendo conhecida e indiscutível oficina do diabo, cabeça vazia não trabalha sem as devidas e necessárias ferramentas.
É preciso liberdade para se dar sentido à malquerença.
Assim sendo, ou não sendo, logo começou a circular no povoado uma inédita e inesperada nova idade. Sem que ninguém se desse conta, a feiticeira voltou ser novamente a novidade.
Toda gente tinha fresquinho algum fuxico para acrescentar ao disse me disse que fazia dela a razão do mexerico.
Naquele imenso bordado, nenhuma linha dava ponto sem nó.
Confinada em seu alvéolo, a feiticeira exibia suas asas de libélula – transformando o trivial em extraordinário.
Nas paredes brancas do cubículo onde a confinaram, começou a pintar uma enorme embarcação.
Dias a fio, ficou ali, confinada e entregue à sua obsessão.
Aquele barco era um interminável túnel, passagem camuflada para a libertação de sua mente. Tecendo seu fio de Ariadne, dava um sentido àquele seu confinamento.
Sob o olhar atento do carcereiro, que navegava naquele mar de riscos, linhas e traços – o veleiro foi ganhando forma.
E a feiticeira ali, destilando o mel de seus embruxos – senhor meu guardião, o que falta neste barco?
Sem mais nada o que fazer, além de vigiar a vida alheia, o homem resolveu ajudar. Devagarinho foi aparando quinas e arestas – até o barco surgir exuberante na brancura fria da parede.
Agora, não falta nem um tiquinho de nada para que isso seja um barco, senhora dona moça.
Então, vá até ali no ribeirão – buscar um poucachinho de água para que ele possa navegar.
Imerso na imensidão daquele mar de impossibilidades, o homem mergulhou por inteiro naquela fantasia e lá se foi buscar no ribeirão o fiozinho de realidade que faltava àquele faz-de-conta.
A aparição grudada ali na parede era o pedaço inteiro de um entressonho que jamais tinha imaginado algum dia viver.
Mais do que um capricho da feiticeira, aquele barco era a invenção de um desatino – impossível de se fabricar para além da imaginação. Puro delírio e alucinação.
Apesar de tudo isso e mais um pouco, ali estava ele bebendo o bem bom de toda aquela maluqueira. Em fiel desacordo com suas crenças, juízos e convicções.
Barbaridade boa é mesmo assim, deixa a gente perdidinho entre a loucura e contrassenso. Vai ver que foi só pra isso que viveu até aquele exato instante: ver navegar no mar da fantasia um barco que nem sequer existia.
A manhã e a tarde quase inteira, ficou ali às voltas com a transposição do ribeirão das lonjuras onde se achava até o aconchego do lugarinho onde se encontrava a feiticeira.
Sem a menor ideia de como conduzir o ribeirão, toda sua fúria e correnteza, até o confinamento da masmorra, o pobre homem perambulou de botequim em botequim turbinando de canjebrina as ideias.
Assim que retornou ao xadrez, acendeu uma vela para o seu Santo Padroeiro, senhor das causas impossíveis, e foi comunicar à feiticeira os insucessos de missão.
Mas para seu assombro e sobressalto o barco já não estava mais ali, estampado na parede. Em seu lugar, apenas a brancura translúcida e intransponível do vazio.
Desencontrado entre o susto e a comoção, levou ainda um tempo para perceber que a cela estava completamente vazia. Num impasse de mágica, a moradora tinha simplesmente desaparecido.
De sua inexistência ficou apenas um suave perfume flor-de-laranjeira, que irrigou o ar durante uma semana quase inteira.
Avram Ascot
220522